Develop interest in life as you see it in people, things, literature, music - the world is so rich, simply throbbing with rich treasures, beautiful souls and interesting people. Forget yourself. - Henry Miller

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Menino d'oiro


Dorme meu menino, a estrela d’alva/ Já a procurei e não a vi,/ Se ela não vier de madrugada,/ Outra que eu souber será pra ti/ Ô ô ô ô ô ô ô ô ô ô ô ô… Os olhos vão fechando e abrindo, como quem quer resistir ao sono. O calor do leito e o cansaço da infância aliam-se e ganham à consciência. Adormece. Ele continua a cantar a canção de embalar e a olhar a criança adormecida. As memórias invadem o seu pensamento. E lembra-se de quando também ele era um menino.

Domingos Mendes tinha cinco anos quando vivia num bairro de lata em Cascais. Passava o dia a brincar com os outros meninos que lá viviam. O esconderijo das suas brincadeiras eram os espaços livres entre as estacas que suportavam as barracas e o chão. 

Cascais e Lisboa foram as testemunhas das suas aventuras. “Um dia fui-me embora para brincar, lembro-me de andar à procura de autocarros para apanhar boleia. Andei empoleirado atrás dos eléctricos e por lá andei a brincar. Só voltei de madrugada. Quando cheguei a casa o meu pai deu-me com a correia”.  As reprimendas físicas foram frequentes na sua infância, era assim que os seus pais lhe ensinavam o certo e o errado.

Perdeu-se nas memórias e encontrou-se sentado naquela cadeira de madeira. Imóvel e ansioso pela chegada da sua mãe, Maria. Domingos, o menino, esperou todo o dia. À volta da sua perna a linha de costura prende-o à cadeira, de onde não pode sair, está de castigo. “Nós cortamos-te a linha!”, dizem os seus amigos. “Não! Não posso fazer isso senão depois a minha mãe bate-me!”, responde-lhes. “Foi a partir daí que adquiri uma educação tabu.”, pensa enquanto revive aquele dia.

Vi-te a trabalhar o dia inteiro, construir as cidades prós outros, carregar pedras, desperdiçar, muita força pra pouco dinheiro. Vi-te a trabalhar o dia inteiro, muita força pra pouco dinheiro… O seu pai, José, passava muito tempo fora de casa. Saía de manhã cedinho e chegava à noitinha, depois de mais um dia a trabalhar na construção civil. 

Enquanto Salazar tomava conta de Portugal, Domingos não era aceite na escola primária de Cascais. Ainda hoje ouve no seu pensamento a frase da professora: “Se quer que o seu filho vá para a escola leve-o para a sua terra.” Assim, com sete anos Domingos voltou juntamente com a sua mãe para a aldeia que o viu nascer, Benquerença.

No mês de Outubro de 1963 Domingos entrou para a escola primária. “Sempre me senti diferente, era considerado o miúdo dos lados da capital e, penso que, talvez por isso, comecei a faltar à escola.” Depressa Domingos conquistou o seu lugar junto dos colegas devido às suas capacidades desportivas. Jogar à bola passou a ser a forma favorita de passar o tempo e com isso os amigos surgiram.

Em casa Domingos não tinha ninguém que o acompanhasse na escola, por isso, muitas vezes, não fazia os deveres de casa. Faltar à escola foi a solução que Domingos encontrou para fugir às reguadas dos professores. “Às vezes até mandavam outros alunos baterem nos colegas.” 

Na aldeia os seus esconderijos eram as pedreiras de xisto, o material com que as casas da Benquerença eram feitas, e era a igreja, onde ajudava o cónego nas missas mais tardias. O cheiro a cera derretida assalta-lhe os sentidos lembrando-lhe as vezes em que acendeu e apagou as velas da igreja. Era uma brincadeira e uma novidade para ele, pois em sua casa nem velas tinha, usavam apenas candeias de azeite. “Era um ritual que mexia com a minha imaginação”, pensou para si, até admirado por perceber a razão pela qual lá ia. “Cheguei a pensar que assim me safava do castigo. No final de contas estava na igreja, mas não.” “Primeiro a obrigação, depois a devoção”, uma frase de sua mãe que ainda sobrevive na sua mente.

O meu menino é d’oiro, é d’oiro fino. Não façam caso que é pequenino. O meu menino é d’oiro, d’oiro fagueiro. Hei de levá-lo no meu veleiro… De repente, é invadido pelos cheiros e pelos sabores da aldeia da sua infância. Pão de trigo. Era a sua avó que o fazia, sendo esse o seu oficio. Nos dias em que estava com a sua avó materna havia um carinho especial. Junto à arca antiga de madeira da sua avó, ela perguntava: “Que queres comer meu menino?”, “quero trigo!” respondia-lhe o menino de oiro.

Domingos costumava ver dois rapazes da aldeia que estavam no seminário e pensar para si: "Eles são diferentes, são livres!”si: “ Naquele tempo e naquelas aldeias estudar era para os poucos que podiam. Continuar a estudar não era possível, a não ser num seminário. Quando a oportunidade surgiu e lhe perguntaram se ele queria ir para um, Domingos disse que sim. “Lembrava-me daqueles dois rapazes que eram tão admirados na aldeia e eram mais livres do que eu.” A educação tabu da sua infância dava agora frutos, visto que ir para um seminário e a possibilidade de um dia vir a ser padre era algo muito admirado pela aldeia e pelos seus pais.

“Quem quer ir para o seminário?”, perguntou o professor. Depressa todos colocaram o dedo no ar cheios de esperança que assim fosse. “Não tu! Tu baixa o dedo!”, foi a resposta do professor para alguns. “Estava com medo que ele me dissesse isso a mim, mas não disse.”, e, mesmo agora, tantos anos depois, sente o mesmo alívio. Na aula daquele dia um frade dominicano veio falar da vida no seminário e tentar angariar novos alunos para a Ordem Dominicana. “Era uma figura elegante, todo vestido de branco, parecia diferente. Gostei.”, e relembra a primeira impressão que teve de um padre que mais tarde veio a conhecer muito melhor, o padre Rogério.

No final do seu último ano da primária Domingos foi juntamente com mais dez colegas seus para um estágio no seminário dominicano da Aldeia Nova, em Vila Nova de Ourém. Durante esse estágio Domingos teve um vislumbre do que seria a sua vida naquele ambiente: “Fomos tratados como lordes, nunca tinha comido tantas refeições como comi ali. Até à piscina nos levaram”. Mas não foram só actividades lúdicas e brincadeiras. Nessa semana os dez alunos realizaram todos os dias testes psicotécnicos. O objectivo era saber se os alunos tinham as capacidades cognitivas necessárias para levarem uma vida de conhecimento dentro do seminário.

O menino que fugia da catequese e que não tinha feito o crisma por não ter sabido dizer de cor o credo da religião Católica passou nos testes psicotécnicos e, pouco importou para a Ordem Dominicana os rituais religiosos. “Foi realmente extraordinário a maneira como os dominicanos deram apenas importância ao conhecimento”, pensa para si com um misto de orgulho e honra. Assim, o menino de oiro passava agora a seminarista.

Vozes altas e passos atarefados trazem-no de volta à azafama daquele dia em que o enxoval do menino de oiro era preparado. “É preciso três camas!” lia-se na carta que enumerava todas as coisas necessárias para a vida de Domingos no seminário. Levou na mala grande de metal todas as suas roupas de cores neutras, os produtos de higiene, carrinhos de linhas e muitas mais coisas. Ao pensar nas coisas que levou ri-se quando se lembra que aquela foi a primeira vez que teve a sua escova de dentes e o seu próprio sabonete. 

A partir de 1967 Domingos ficou entregue à vida do seminário, pagou vinte escudos por mês durante um ano para lá andar. Domingos integrou-se naquele seminário e desde então os padres responsáveis informaram José e Maria que não tinham de pagar mais mensalidades.

Ganho a camisa, tenho uma fortuna. Em terra alheia, sei onde ficar. Eu sou como o vento que foi e não veio. Maria Bonita, onde vamos morar? Sino de bronze, lá na aldeia. Toca por mim que estou para abalar. E a fala da velha, da velha matreira. Maria Bonita, onde vamos penar? Enquanto o menino de oiro se transformava num rapaz independente, os seus pais partiam na aventura da emigração. Como tantos outros, também José e Maria decidiram tentar outra sorte num outro país que lhes pudesse dar mais do que o pouco que tinham na sua aldeia. 

A sua vida de seminarista foi sempre regrada. Todos os dias e todas as horas estavam programadas conforme a organização do seminário e dos seus responsáveis. As aulas eram dadas pelos frades excepto a algumas disciplinas que era leccionadas por professores externos. As missas não eram obrigatórias. Domingos só fez o crisma alguns anos depois de ter entrado no seminário devido ao encorajamento de um frade cooperador, o Frei Gonçalo, que era de Benquerença. Assim, o Frei Gonçalo foi o seu padrinho do crisma. A igreja do seminário era moderna e a participação na vida civil exterior à Ordem era encorajada. O menino de oiro era livre dentro das regras. No seminário, Domingos jogava à bola e tinha muitas actividades físicas. Também, a etiqueta e a higiene pessoal eram ensinadas lá pelas irmãs dominicanas.

A relação familiar tornou-se longínqua. Domingos visitava os seus pais e irmãos nas férias grandes de Verão, sempre em França, onde estavam todos. No final do seu percurso escolar secundário as notícias más chegam. José, seu pai, tem um acidente grave no seu trabalho que o deixa muito debilitado com necessidade de uma longa recuperação. O menino de oiro deixa imediatamente os seus estudos e fica o tempo necessário em França junto da sua família. Três meses depois o seu pai recupera e Domingos decide voltar ao concelho de Ourém para acabar os seus estudos.

Passou um ano a trabalhar na Aldeia Nova com as crianças abandonadas enquanto estudava à noite no liceu de Leiria. É no Porto que se inicia um novo capítulo da vida de Domingos. Foi lá que fez o seu noviciado. Estudou música e compreendeu melhor a história do fundador da sua ordem religiosa.

S. Domingos de Gusmão foi o fundador da Ordem Dominicana, também conhecida pela Ordem dos Pregadores. Domingos conta no seu pensamento a história que sabe já tão bem: “Conta-se que ele passava noites e noites a discutir com os homens nos cafés a tentar convertê-los e a tentar fazer vê-los através da palavra a fé em Deus e em Cristo.” Quando o menino de oiro estava de volta à sua aldeia e chegava de madrugada a casa era isso que dizia ao seu pai: “Eu sou como o meu fundador. Discuto à noite com os outros sobre as coisas!”

Foi em Fevereiro de 1974 que Domingos despertou para a realidade do seu país. Num retiro orientado pelo Frei Bento, um frade revolucionário que era perseguido pela PIDE, o menino de oiro entendeu, finalmente, que a pobreza e as injustiças que a sua família viveu eram a realidade da maioria das famílias de Portugal.

Manifestação da Geração À Rasca - 12 de Março de 2011
Grândola, vila morena. Terra da fraternidade. O povo é quem mais ordena. Dentro de ti ó cidade… Por isso quando o 25 de Abril chegou o menino sorriu e entendeu o porquê da revolução.

Chegou, também, o dia em que Domingos fez os seus votos de obediência a Deus. Prometeu viver em comunidade, viver na pobreza e no celibato. O menino de oiro tornou-se frade. As conversas intelectuais com os seus amigos frades, os jogos de futebol organizados entre todos e o trabalho com crianças abandonadas e carenciadas preenchia-lhe a vida.

Porém a vida de frade, agora universitário, já não o satisfazia. Lembrou o quanto o desagradava o facto da Universidade Católica, onde estudava Teologia, apenas contar com homens da igreja de uma linha tradicional. Os padres dominicanos, tão abertos às novas ideias e às novas políticas, eram postos de parte. Aquele dia assalta-o, mais uma vez, e vive-o como se fosse ontem. 

A conversa que teve com o Provincial da Ordem Dominicana, o Frei Mateus, foi o último e necessário estímulo que teve para se decidir. Quando ouviu falar em ordenação para padre ele respondeu-lhe logo, “Ainda não quero isso, talvez mais tarde.” Parece estar a ouvir aquelas palavras neste preciso momento: “Mais um! Você veja lá o que anda cá a fazer!” Foi aí que percebeu que já tinha acabado. Pensou no conselho que todos na aldeia lhe tinham dado antes de ir para o seminário: “Se te perguntarem se queres ir para padre, diz que sim!”. Quando se deu conta das palavras já tinham saído da sua boca: “Então, quero a exclaustração.” Enfim duma escolha faz-se um desafio. Enfrenta-se a vida de fio a pavio. Navega-se sem mar, sem vela ou navio. Bebe-se a coragem até dum copo vazio. E vem nos à memória uma frase batida. Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida.

Domingos abandonou, assim, a ordem Dominicana por estar insatisfeito com toda a frieza e com todas as indevidas exigências que lhe tentavam fazer. Saiu do Convento, onde vivia em Lisboa, e mudou a sua vida e a sua carreira.

Tocaram a rumba e dancei com ela e num passo maluco voamos na sala, qual uma estrela riscando o céu e a malta gritou: “Aí Benjamim!” Olhei-a nos olhos, sorriu para mim, pedi-lhe um beijo, la la la la la, e ela disse que sim, e ela disse que sim… A mudança chegou rapidamente. O namoro começou num fim de semana de Junho de 1982 na Fonte da Telha. O grupo de jovens do qual era o animador deu-lhe a conhecer uma rapariga especial. Já eram amigos há três anos e foi neste fim de semana que se tornaram companheiros para a vida.

E entretanto o tempo fez cinza da brasa. E outra maré cheia virá maré vaza. Nasce um novo dia e no braço outra asa. Brinda-se aos amores com o vinho da casa. E vem-nos à memória uma frase batida. Hoje é primeiro dia do resto da tua vida... Três anos depois, no dia nove de Março, o menino de oiro casa-se na aldeia que o viu nascer e partir para uma vida religiosa. 

O silêncio do quarto e da criança adormecida é, então, interrompido. “Domingos, vens dormir? Ela já adormeceu?”. Domingos é retirado das suas memórias e decide deixar mais uma vez o menino do bairro de lata, o menino da aldeia, o seminarista e o frade dentro do seu pensamento. Agora é tudo isso e muito mais. A noite passada fui passear no mar, a viola irmã cuidou me arrastar, chegado ao mar alto abriu-se em dois o mundo, olhei para baixo dormias lá no fundo, faltou-me o pé , senti que me afundava, por entre as algas teu cabelo boiava, a lua cheia escureceu nas águas e então falámos, e então dissemos aqui vivemos muito anos.

* Músicas de José Afonso e Sérgio Godinho

domingo, 15 de abril de 2012

Pezinhos à Chaplin!


Pezinhos à Chaplin!, diz a professora de ballet às suas bailarinas. Todas elas sabem, ao ouvir a ordem da professora, que devem colocar os seus pés para lados opostos criando uma linha reta.
Essa postura pertence à personagem de Charlie Chaplin, conhecida como Charlot – The Tramp. Desde sempre que a personagem se confunde com o realizador, ator e compositor.
Que personagem é esta? Charlot! Um vagabundo modesto e romântico? Um sem abrigo mudo e infantil? Um cómico íman de problemas? 
O Charlot é o menino que Chaplin foi quando ficou órfão à força devido ao enlouquecimento da sua mãe. É o menino que assistiu à obsessão da sua mãe em esmigalhar o pão para ter comer para si e para o seu irmão. É a criança que viu a loucura da sua mãe tomar conta da sua carreira como cantora. É a criança que se tornou cantor e comediante para sobreviver à vida.
Em O garoto de Chaplin (The Kid) de 1921 vemos um Charlot paternal que mostra o sofrimento da separação de um pai e um filho à semelhança da vida do próprio realizador. Em quase todos os filmes protagonizados pela sua personagem ícone a fome está presente, seja em A quimera do ouro (The Gold Rush) de 1925, na famosa cena em que o vagabundo come com o seu companheiro de aventuras um sapato cozido ou na cena em que o seu amigo completamente esfomeado vê Charlot na forma de uma galinha, ou ainda na curta metragem A vida de um cão (A dog’s life)de 1918 em que Charlot rouba comida para se alimentar e ao seu cão.
A velhice e o declínio na vida de um artista foram sombras que Chaplin viu na vida da sua mãe e que volta a abordar no filme Luzes da Ribalta (Lime Light)de 1952, onde um velho artista encontra uma nova esperança ao ajudar uma jovem bailarina a recuperar da depressão. 
As roupas gastas e sujas do the little tramp foram em tempos as roupas do menino que foi. Apesar de todo o sofrimento que podemos vivenciar ao ver os filmes de Charlie Chaplin sentimos ao mesmo tempo um humor genial e um sorriso especial. 
O sorriso genuíno do vagabundo é a maior dádiva e o maior conselho que Charlie Chaplin nos deixou.

Geraldine Chaplin & Oona Chaplin (filha e neta de Chaplin) cantam Smile

Smile, though your heart is aching. Smile, even though is breaking. When there are clouds in the sky you’ll get by. If you smile through your fear and sorrow. Smile and maybe tomorrow you’ll see the sun come shining through. Light up your face with gladness. Hide every trace of sadness. Although a tear may be ever so near. That’s the time you must keep on trying. Smile, what’s the use in crying? You’ll find that life it’s still worthwhile if you just smile. - Charlie Chaplin